A Morte como denúncia em Cadernos Negros - Volume 34

 Ardoca de Conceição Evaristo


Com relação ao tratamento que os autores de Cadernos Negros que publicaram no volume 34 dedicaram ao tema Morte como forma de denúncia das várias situações de desumanização vivenciada pela população afrodescendente, o conto Ardoca de Conceição Evaristo é revelador. Nele é retratado o morrer como atuação premeditada, ou seja, o suicídio cuidadosamente planejado na ação do personagem Ardoca que resolve sair da vida no mesmo cenário que fez parte de sua existência desde a concepção, quando sua mãe grávida usava o trem para se locomover do trabalho a casa diariamente, até após o nascimento. Posteriormente, quando adulto, Ardoca seguia o mesmo trajeto de ir e vir sobre os trilhos imutáveis, que parecia traçar a imutabilidade de seu destino de trabalhador e morador suburbano.
O barulho característico da composição se atritando nos trilhos da linha férrea, descrito pela autora, nos levam a sentir a tensão interna da personagem:
“Estava sempre atento, tenso, como se o trem, a qualquer momento, pudesse se autocolidir, se autoembarafunhar, fazendo com que o último vagão se fechasse em círculo sobre o primeiro e soltasse tudo pelos ares.”
Outro trecho, no qual a autora descreve a agitação no dia a dia na realidade vivenciada no veículo de transporte público, utilizado por centenas de vidas, com as mais variadas ações individuais e coletivas, é percebida pelo personagem como mesmice da vida na monotonia cotidiana que desumaniza. Com plena consciência do uso da palavra como instrumento e veículo da densidade dramática da trama, a autora vai revelando o conflito existencial de Ardoca, tecendo o clima do desfecho da morte premeditada como um círculo que se fecha.
Afora um ato solidário de uma das passageiras, a personagem morre em meio à lufa-lufa de um trem superlotado como mais um ato qualquer para os que assistem a sua breve agonia. Outro ato, aparentemente solidário de uma personagem que surge de repente para socorrer o moribundo, mas que acaba saqueando o defunto encerra o clima da banalização da morte e do morrer nos grandes centros urbanos. Assim descrito por Conceição Evaristo:
“Aquele que o socorrera estava a meter a mão nos bolsos de Ardoca e a arrancar os sapatos e o relógio que ele trazia no pulso.”
E mais adiante Evaristo revela:
“Não era preciso porém nem dor, nem lágrimas. O outro podia levar os poucos pertences de Ardoca. Podia tomar-lhe tudo. Ardoca não tinha mais nada, nem a vida.”